quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

banco alto e uma luneta - capítulo III – Ademar pelas bandas

no armário do quartinho de guardados havia esmalte vermelho sangue, bolotas de algodão, algumas toalhas, chinelos, um skate, escova de cabelo e nada de acetona. Continuo então, com um de meus pés borrocado de esmalte vermelho sangue.
Agora, quase no final da tarde, o movimento aumentou um pouco. Por que será que onde tem gente tem lixo? Por que não conseguimos ficar ao menos algumas horas sem gerar lixo? Do banco alto, com luneta em punho, já visualizo um saco de batatas fritas arreganhado no chão, um todinho espremido largado num tronco baixo de uma árvore e copos plásticos espalhados pelo gramado, fingindo-se de flores.No estatuto do Piscina Lazer e Cia está claro, claríssimo! Limpeza, bem como varrição e catação de lixo não são, de forma alguma, função da(o) guardiã(o) de piscina... mas, dane-se o estatuto!
Desço e, lentamente, sem pressa, me abaixo e pego o saco de batatas, busco o todinho no galho... e jogo no lixo. Ainda são poucas as pessoas que estão por aqui. Antes de me abaixar, de me esticar, de catar e juntar, cada um dos objetos largados à esmo, lanço um olhar para cada sócio ou banhista que cruzo pelo percurso. Meu olhar de reprovação é assim: suspendo ligeiramente as maçãs do rosto, espremo os cantos laterais dos olhos e projeto minhas pupilas diretamente para dentro dos olhos do acusado...
Ademaaaar!!
Ademar?! Enquanto lançava meu olhar para a garotinha de boinhas de braço, vi Ademar, lá no fundo, talvez chegando, talvez saindo... Será mesmo Ademar? O “meu” Ademar dos tempos de escola? Há quanto tempo não vejo Ademar? Desde que eu dizia para ele, com toda a certeza do mundo, que eu seria uma pessoa importante, que seria médica, médica-cirurgiã, que seria rica, bela e poderosa...
Não posso ver Ademar. Não posso, de modo algum ser vista por Ademar.
Corro, o mais rápido que posso, em direção as árvores do gramado em volta da piscina. Corro utilizando todas as técnicas de atletismo aprendidas na faculdade de Educação Física. Vendo que não chegaria aos arbustos à tempo de me esconder de Ademar, num salto, giro uma cambalhota fugidia e já me vejo de quatro, atrás de um arbusto.
Lá está ele, Ademar! Nunca havia freqüentado O Piscina Lazer e Cia... estaria ele com a família ou sozinho?
Ademar foi o primeiro e talvez meu único grande amor. Não quero que me veja aqui, uma simples guardiã de piscina... o que vai pensar? Que sou uma fracassada, uma iludida, pobre e sozinha.
Me movimento rapidamente para trás de um largo tronco de árvore. Não posso ficar aqui a tarde inteira. Vou enfrentar Ademar! Mas como vou fazer para que saiba que não sou tão fracassada assim? Ele precisa saber ao menos, que fiz faculdade de Educação Física. Preciso pensar... pensar rápido... não posso simplesmente chegar e dizer: oi, tudo bem? Sabia que eu fiz faculdade de Educação Física?!
Vou dizer que estou atrasada para o jantar de confraternização da turma de formandos do curso de Educação Física da Universidade Santa Luzia de Lavrinhas... É isso!
Não, não sei se quero ver Ademar. Eu era dona dos pares de coxas e peitos mais almejados da escola... talvez agora ele nem me reconheça.
Aqui tem um formigueiro, corro, quase desesperada pelo gramado e me jogo, deitada, atrás de uma espreguiçadeira.
Ademar também não está lá essas “coca-colas” não. Que barriga é aquela? Com certeza está casado. Eu devia estar casada... uma aliança. Preciso falar com Ademar que não tenho muito tempo para bater papo agora, por que estou atrasada para o jantar de confraternização e meu marido está me esperando... não, meu marido estaria vindo me buscar. Já sei, basta dizer esse troço da confraternização com uma aliança no dedo. Como vou arrumar uma aliança agora?
A grama pinica meu corpo todo. Daqui vejo Ademar. Vejo também, no chão, próximo à uma das mesas, um metal brilhando... afinal, o lixo daquela gente sem educação me serviria enfim...
Olhei por uma fresta embaixo da espreguiçadeira e num pulo, me levantei e a passos quase normais, me aproximei do metal, abaixei e encaixei no dedo um lacre de latinha de refrigerante. Estava aí minha aliança.
Ah Ademar! Quantas vezes sonhei com você, esses anos todos... Andei em sua direção. O coração cantava descompassado. Ademar estava de costas para mim. Hesitei um pouco e então pus a mão em seu ombro. Virou-se para mim um homem de nariz adunco, bochechas pendentes e olhos miúdos.
O homem, que não era Ademar, esperava de mim uma reação, afinal eu era a guardiã de piscina. Senhor, este lacre de latinha de refrigerante é seu? Não jogue mais lixo no chão, ou serei obrigada a notificá-lo junto á diretoria...
Saí sem olhar para trás. Escalei meu banco alto e então me senti segura.
Compunha-se ali o veredicto final: eu envelhecia. Primeiro por que agora era certo que precisaria de óculos, segundo, que havia repetido a palavra “Ademar” dezoito vezes em menos de duas laudas e meia...
Leu?
Assista a seguir, filme de trecho do capítulo:

Filme - Capítulo III

4 comentários:

  1. Queria ver a cara do Ademar... rsrsrs!
    Parabéns,
    Gab

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  2. Realmente essa falta de educação de jogar lixo no chão me incomoda muito também. Vc abordou esse tema de uma forma muito legal. Parabéns !
    Alex

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  3. rssss Muito bom! Primeira vez que leio e assisto, gostei. Interessante, lemos o texto imaginando todas as cenas, personagens, e logo após vc tem o filme dando vida a leitura. Muito legal, tentarei acompanhar.
    Luciene está muito bem.Foi ótimo ela olhando para os seios e tb dando cambalhota rss; o som do pagode bem beira de piscina e a rádio fazendo a propaganda do apoiador caiu muito bem.
    Parabéns!
    Amanda Gomes.

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  4. Nossa, ri um bocado !! na leitura e no video !
    Adorei ! Quero + !
    parabens a todos,
    Daniel

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