sexta-feira, 20 de fevereiro de 2009

banco alto e uma luneta - capítulo II – meus dedos dos pés e a boca dos outros

quarta-feira é um dia sem muito valor. Não se inicia nada e nem está perto do fim. Acordei hoje querendo não acordar. Me olhei no espelho e achei minhas maçãs mais inchadas, os poros de minha pele mais abertos e manchas de sol brigando entre si: deixa eu, deixa eu, deixa eu aparecer mais!... Achei mesmo que hoje era dia de maiô preto, no máximo uma lista branca na lateral.
A escolinha de natação acabou às oito e já são dez e quinze. Daqui de cima, foco a lata de lixo com minha luneta. Nada de mais! Foco a grama e procuro bichinhos. Formigas enfileiradas, besouros, percevejos, pulgas, aranhas... nada! Nada mesmo. Só havia eu. Eu, no máximo um ou dois banhistas, o banco alto e minha luneta.
Olhei minha virilha e escorri os olhos para minhas coxas. Onde estavam eles? Quero dizer... sei que havia ali... sempre estiveram comigo e eram até motivo de orgulho. Meus músculos haviam ido embora.
Uma guardiã de piscina sem músculos?
Passei as mãos no cabelo. Como estavam secos e maltratados pelo cloro! Pude perceber também uma barriga, mais saliente e muito mais viva. Mas que droga!! Pensei que, talvez, se eu ficasse o máximo de horas da minha vida aqui, sentada neste banco alto, o tempo me poupasse ao menos um pouco.
Olhei ao redor e realmente não havia ninguém. Lembrei que já fazia praticamente um ano após meu último namoro frustrado. Eu estava só. Eu, banco e luneta.
Com a lente da luneta encostada em um de meus olhos, foquei meus pés. Pés paralelos, soltos no ar, se esquecendo de movimentos básicos como encolher e afastar os dedos. Eu, verdadeiramente, havia esquecido de meus pés. Pés cascudos que já nem sentiam o calor do chão. Pés que voavam mais, que caminhavam.
Muitas coisas minhas e dos outros ficavam esquecidas no armário do quartinho de guardados da Piscina Lazer e CIA. Um chumaço de algodão e um esmalte vermelho sangue prontos para me fazerem sentir algum prazer comigo mesma.
De volta ao banco, me certifiquei novamente do vazio ao meu redor. Hesitei ao lembrar de como eu repudiava mulheres lambuzadas de blondor estateladas ao sol. Pintar as unhas seria o mesmo?
Estiquei os braços e alcancei meus pés flutuantes. Separei os dedos com bolotas gordas de algodão e envernizei uma a uma. Agora sim, eu começava a sentir até uma vontadezinha de beijar boca de homem.
Socorro!! Upf! Socor... Treinada que sou, olhei rapidamente para frente. Primeiro ouvido, depois olhos e então, a ação. Desci de meu banco alto em menos de quatro segundos.
Ainda com bolas de algodão prensadas entre os dedos e esmalte fresco nas unhas, corri rapidamente. No meio do trajeto, peguei minha prancha de salvamento, hoje meio esquecida num canto qualquer. Avistei o alvo na piscina funda, exatamente abaixo do trampolim. Cabeça surgia, cabeça sumia.
Num salto, mergulhei e passei o braço em torno de seu pescoço. Na borda, tive dificuldades de tirar o homem da água, que parecia querer sugá-lo pelo ralo.
Deitado, na beira da piscina, o alvo não respirava. Olhei meus dedos dos pés. Um borrão vermelho sangue pelas unhas, dedos, pés e até um pouco na canela. Fiapos de algodão encharcados entre, sob e sobre os dedos, por baixo das unhas e grudados nos meus calcanhares.
Apertei o nariz do alvo com os dedos indicador e polegar. Iniciei então a famosa respiração boca a boca. Um enorme jato d’água clorada jorrou de dentro da boca do alvo e acertou a minha, que ainda estava aberta, se preparando para o próximo sopro.
O alvo recobrou a consciência e se sentou. Chorando, me agradecendo, me abraçando, me beijando, estava ali, sentado, com as largas dobras da barriga à mostra, Sr Irene, um associado antigo, que resolvera, justo no dia em que pinto minhas unhas, pular de um trampolim - indicado para pessoas com menos de setenta e cinco anos.
Já estou no alto. O maiô é preto, mas os dedos, os pés e parte das canelas são vermelho, vermelho sangue borrocado.
Beijei a boca de um homem? Beijei. Beijei a boca de um homem com o dobro da minha idade e o mesmo nome da minha tia. Irene.

Leu?
Assista a seguir, filme de trecho do capítulo:

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